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sábado, 21 de dezembro de 2013

Jorge de Sena – Poemas

JORGE DE SENA - POEMAS


Vilancete

No instante da partida
há sempre uma demora
não do tempo – da vida.

Na verdade, não chora
quem sabe o espaço e o casto
abraço dessa hora:
instante só mas vasto
e ausência concebida.
Se ninguém deixa rasto
de verdade perdida,
tenuemente se cora
o escasso perfil gasto:
não do tempo – da vida.

(Jorge de Sena, in “Pedra Filosofal”)


O corpo não espera

O corpo não espera. Não. Por  nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo.

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

(Jorge de Sena)

Ode ao futuro

Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Sutis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente. 

Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis. 

E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro. 

E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós – de nós! – como de um sonho. 

(Jorge de Sena, in “Pedra Filosofal”)

Amo-te muito, meu amor, e tanto

Amo-te muito, meu amor, e tanto 
"Sweet thoughts". Josef Kote.

que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor de teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz de guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,

tão quase é coisa ou sucessão que passa…
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.

(Jorge de Sena, 22 de fevereiro de 1954)

X

Rígidos seios de redondas, brancas,
frágeis e frescas inserções macias,
cinturas, coxas rodeando as ancas
em que se esconde o corredor dos dias;

torsos de finas, penugentas, frias,
enxutas linhas que nos rins se prendem,
sexos, testículos, que inertes pendem
de hirsutas liras, longas e vazias

da crepitante música tangida,
úmida e tersa, na sangrenta lida
que a inflamada ponta penetrante trila;

dedos e nádegas, e pernas, e dentes.
Assim, no jeito infiel de adolescentes,
a carne espera, incerta, mas tranquila.

(Jorge de Sena, 27 de fevereiro de 1954)

Arte amar

Quem diz de amor fazer que os atos não são belos
que sabe ou sonha de beleza? Quem
sente que suja ou é sujado por fazê-los
que goza de si mesmo e com alguém?

Só não é belo o que não deseja
ou que nosso desejo mal responde.
E suja ou é sujado que não seja
feito do ardor que se não nega ou esconde.

Que gestos há mais belos que os do sexo?
Que corpo belo é menos belo em movimento?
E que mover-se um corpo no de um outro o amplexo
não é dos corpos o mais puro intento?

Olhos se fechem não para não ver
mas para  o corpo ver o que eles não,
e no silêncio se ouça só o ranger
da carne que é da carne a só razão.

(Jorge de Sena, in “Versos e alguma poesia de Jorge de Sena.”)

Quem a tem...

Não hei-de morrer sem saber
Qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
Desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença

E sempre a verdade vença,
Qual será ser livre aqui,
Não hei-de morrer sem saber.
Trocaram tudo em maldade,
É quase um crime viver.

Mas embora escondam tudo
E me queiram cego e mudo,
Não hei-de morrer sem saber
Qual a cor da liberdade.

(Jorge de Sena)

Quem muito viu...

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

(Jorge de Sena)

Gênesis

De mim não falo mais: não quero nada.
De Deus não falo: não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.

Nem de existir, que é a vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver, que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.

Por mais justiça ... – Ai quantos que eram novos
em vão a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade... Ó transfusão dos povos!

Não há verdade: O mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais, todos mentiram.

(Jorge de Sena)

"The Kiss". Roy Lichtenstein.
Beijo

Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja

quanto de lábios se deseja.

(Jorge de Sena)

Vilancete

– Meu corpo, que mais receias?
– Receio quem não escolhi.

– Na treva que as mãos repelem
os corpos crescem trementes.
Ao toque leve e ligeiro
o corpo torna-se inteiro,
todos os outros ausentes.

Os olhos olham no vago
das luzes brandas e alheias;
joelhos, dentes e dedos
se cravam por sobre os medos...
Meu corpo, que mais receias?

– Receio quem não escolhi,
quem pela escolha afastei.
De longe, os corpos que vi
me lembram quantos perdi
por este outro que terei.

(Jorge de Sena, 1949)

Amor

Amor, amor, amor, como não amam
os que de amor o amor de amar não sabem
como não amam se de amor não pensam
os que amar o amor de amar não gozam.

Amor, amor, nenhum amor, nenhum
em vez do sempre amar que o gesto prende
o olhar ao corpo que perpassa amante
e não será de amor se outro não for
que novamente passe como amor que é novo.

Não se ama o que se tem nem se deseja
o que não temos nesse amor que amamos
mas só amamos quando amamos ao acto
em que de amor o amor de amar se cumpre.

Amor, amor, nem antes, nem depois,
amor que não possui, amor que não se dá,
amor que dura apenas sem palavras tudo
o que no sexo é o sexo só por si amado.

Amor de amor de amar de amor tranquilamente
o oleoso repetir das carnes que se roçam
até ao instante em que paradas tremem
de ansioso terminar o amor que recomeça.

Amor, amor, amor, como não amam
os que de amar o amor de amar não amam.

(Jorge de Sena, in “Peregrinatio ad loca infecta”, 1969)

Uma pequenina luz bruxuleante

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumiére
just a little light
una piccola… em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não veem
só a advinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exata
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exatidão como a firmeza
como a justiça
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
Indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exatidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
No meio de nós.
Brilha.

(Jorge de Sena, in “Fidelidade”, 1958)


"Vênus de Urbino". Ticiano.
Sobre a nudez

Quoi! Tout nu! dira-t-on, n’avait-il pas de honte?
...
Tout est nu sur la terre, hormis l’hypocrisie.

Musset, Namouna

Nus nascemos, nus
nos inspeciona o médico,
a tropa, o professor de ginástica.

Nus, na mesa de operações,
na cama de hospital,
no dia da morte.

Nus no amor para nos vermos,
sentirmos a pele dos outros corpos e
para mais que penetrarmos

termos o choque e o roçar
que nos dizem do quanto penetramos.
Nus sempre, menos no que não importa.

Porque há então quem tema tanto
a nudez dos outros? Será
que teme, menos que o feio
de muitos, a beleza de
alguns, ou o fascínio das
esplêndidas partes

de uns raros? E que, paralisados
(de inveja), deixemos que o mundo e a vida
se soltem à deriva
para a nua liberdade?

(Jorge de Sena, 1969)

Fidelidade

Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.

Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.

(Jorge de Sena, 1956)

Felicidade

A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela.

Tinha feições de menino inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor para ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo pelas faces humanas.

E, como menino que era,
achava um grande mistério no seu próprio nome.

(Jorge de Sena)


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