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terça-feira, 12 de março de 2013

Texto: “O aluno relapso” – Lêdo Ivo

O aluno relapso

   Eu era o primeiro da aula; ele, o último.
   Cumulado pelos elogios dos professores e o orgulho fami­liar, eu invejava, do fundo do coração, o colega turbulento sentado emblematicamente no último banco.
"Flowers" - Banksy
   Ele fumava nos recreios, desafiando o olhar suspeitoso dos vigilantes (e, entre duas tragadas enérgicas, proclamava atrevida­mente a inexistência de Deus), envolvia-se em episódios truculen­tos, vangloriava-se de proezas sexuais nem sempre ortodoxas. Seu rendimento escolar era praticamente nulo, e os professores, irmãos maristas, submetiam-no a continuados exercícios de humi­lhação. Mas eu o invejava; ele significava, para mim, a aventura e a transgressão.
   Uma tarde de domingo, o acaso nos fez caminhar juntos pe­las ruas da cidade. Não lembro o que conversamos — do longo passeio, que só terminou ao sol-posto, ficou apenas a recordação de que ele me ofereceu um cigarro, por mim recusado.
   O encontro inesperado repercutiu na mesa familiar e chegou aos ouvidos dos irmãos maristas, pela boca de alguns piedosos delatores. Fui advertido de que deveria evitar a companhia indig­na, licenciosamente aparelhada para desviar-me dos estudos e do bom caminho.
   Da avalancha de notas más que lhe juncou a trajetória esco­lar, resultou a sua reprovação, no fim do ano. Perdi-o de vista.
   Quarenta anos depois, numa viagem a Maceió, voltei a en­contrar o aluno relapso. Ele pertencia à nobre linhagem dos alagoanos que, amando a terra natal como as cobras amam seus ninhos de pedra, não emigram. Era professor de Direito e desem­bargador, rico e respeitado, de tendências políticas cerradamente conservadoras ou mesmo autoritárias. Considerava a religião um freio indispensável para sustar os desatinos humanos, e entendia que só o pulso forte das instituições militares tinha o poder de conjurar a vocação deletéria da sociedade civil e evitar a anarquia nacional.
   O desenho final não correspondera ao rascunho da ado­lescência. Nem sequer fumava, como se os cigarros furtivos do tempo de colégio tivessem sido incluídos na sua lista de conde­nações e olvidos.
   Vivre avilit — foi esta frase de Henri de Régnier que ressoou na minha memória no instante em que o vi passar, severo e com­passado, rumo ao Tribunal de Justiça. O Rimbaud sem gênio se convertera num intolerante julgador dos outros homens.
   A vida rouba os nossos sonhos, mas há algo que a grande ladra não consegue levar. A deserção formidável fizera de mim o herdeiro do aluno relapso. O sentimento de aventura e trans­gressão, de que ele se despojara em sua metamorfose espiritual, passara a ser meu.
   Eu desmentira os vaticínios que rodeavam a minha austera reputação de primeiro da aula, tornando-me um poeta, e era ago­ra, na idade madura, o aluno relapso que secretamente desejara ser na adolescência.
   O ato de viver não me envileceu.

(Lêdo Ivo, in "Histórias de professores e alunos")


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