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quarta-feira, 30 de maio de 2012

Texto: "O homem que vivia anedotas" - Luis Fernando Verissimo



O homem que vivia anedotas

— Sempre deu tudo errado comigo. Desde criança.
— Espera aí. Você é…
— Sou. O Juquinha. Todo mundo ficou sabendo das minhas histórias, virei anedota.
— Mas as histórias até que eram engraçadas.
— Engraçadas para quem não foi expulso da escola, como eu. Meus pais me mandaram a um médico para curar minha obsessão. Um psiquiatra.
— Não foi esse o médico que...
— É. Começou a me mostrar desenhos. Uma cadeira. Um chapéu. Um telefone. Pediu para eu me concentrar.
— E aí você disse…
— Eu disse: "Me concentrar como, se o senhor não para de mostrar figurinha erótica?". O senhor está rindo porque não foi com o senhor. Fiquei anos em tratamento.
— Desculpa. Eu não estava rindo de você. Continue.
— Como não tinha educação, fui ser mecânico. Não deu certo.
— Por quê?
— Sabe aquela história do cara que acendeu um fósforo dentro do tanque do carro para ver se tinha gasolina, e tinha?
— Foi você?
— Foi. No hospital, tiveram que me reconstituir. Pegaram as partes e juntaram de novo. Tudo bem, só que…
— Só que para ouvir direito, você precisava levantar o braço! Essa é ótima.
— Ótima porque não foi com o senhor.
— Desculpe. Foi horrível.
— Quando saí do hospital comprei uma motocicleta. Uma noite na estrada, vi os holofotes de duas motocicletas que vinham em sentido contrário. Só por farra, resolvi passar com a minha entre as duas.
— E era um automóvel. Essa eu conheço.
— Voltei para o hospital. Tiraram radiografias. Eu estava péssimo. Quando o médico disse quanto ia custar o tratamento, eu disse que não podia pagar.
— E ele?
— Ele disse que por um preço módico mandava retocar as radiografias.
— Grande! Quer dizer, horrível. E seus pais?
— Está vendo esse relógio? Está na família há gerações.
— É uma beleza.
— No seu leito de morte, poucos minutos antes de expirar, papai me vendeu.
— Boa, boa. Quer dizer, triste, triste.
— Me casei. Não durou muito. Minha mulher estava convencida que era um refrigerador.
— Realmente, não dava para continuar vivendo com uma louca.
— O pior não era isso. O pior é que ela dormia com a boca aberta e a luz não me deixava dormir. O senhor está rindo outra vez.
— Não posso me conter. É que você teve uma vida engraçada.
— Engraçada? Trágica. Tudo comigo deu errado. As pessoas riem de sádicas.
— Você tem razão.
— Para esquecer tudo, fui fazer uma viagem. Quando o avião estava a dez mil metros de altura, ouviu-se uma voz que dizia: "Isto é uma gravação. Este avião não tem piloto. É dirigido por um sistema totalmente automático que substitui com vantagem o controle humano. Não há com o que se preocupar. O sistema foi exaustivamente testado é absolutamente à prova de falhas, de falhas, de falhas…".
— O avião caiu e foi assim que você veio parar aqui?
— Não, São Pedro. O avião caiu no mar, eu sobrevivi e passei uma temporada numa ilha deserta com uma mulher. Só que a mulher era a Betty Friedman.
— Acho que já vi esse cartum.
— Pois é. Aí fui salvo e ainda passei por várias anedotas até resolver me matar. Não conseguia fazer nada certo. Só restava o suicídio. Dei um tiro na cabeça.
— E aqui está você.
— Não. Errei o tiro. Depois fiquei tão contente de ainda estar vivo que dei um tiro para o ar. Aí acertei na cabeça. E aqui estou eu. Livre, finalmente, das anedotas. O senhor ainda está rindo!
— Meu filho você sabe quantas anedotas de São Pedro na porta do céu existem?
— Não, São Pedro. Por favor. Não!
— O que é que eu posso fazer? Esta é uma delas. Houve um maremoto em Copacabana, morreu todo mundo e nós estamos com o céu lotado.
— Lotado? Mas só a população de Copacabana lota o céu?
— É que tinha os argentinos. Você só vai encontrar lugar no Purgatório, e na lista de espera.

(Luis Fernando Verissimo)

www.veredasdalingua.blogspot.com.br

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